7 de agosto de 2008

Dois anos de Lei Maria da Penha

Neste dia estamos comemorando dois anos em que a Lei 11.340/06, Lei Maria da Penha, está em vigor. Apesar de todos os avanços conquistados neste período, ainda temos que trabalhar muito para coibir a violência doméstica contra a mulher.

Depois de sete anos de espera, no início de julho, Maria da Penha recebeu indenização do governo do Ceará que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou, em 2001, o Brasil a pagar. No momento em que a cidadã brasileira, Maria da Penha, recebe do Estado, uma indenização de 60 mil reais, é preciso salientar que a vitória conquistada não está e não pode ser resumida a bens materiais. Foram mais de 25 anos de uma luta árdua contra o preconceito de uma sociedade machista e contra a morosidade da Justiça. Uma mulher, praticamente sozinha, conseguiu derrubar tabus, sobrepujar preconceitos e, corajosamente, acabou como exemplo de luta contra a violência doméstica.

A luta desta mulher começou quando descobriu que seu marido não era mais a pessoa boa e carinhosa que ela imaginava. Era, sim, uma pessoa que tratava a mulher como ser inferior, submissa. Ela já tinha vontade de abandoná-lo, mas faltava a coragem. Até que, em maio de 1983, deitada em sua cama, levou um tiro covarde pelas costas. O autor do disparo era, nada mais e nada menos, Marco Antônio Heredia Viveiros, um economista, professor universitário, colombiano de nascimento, que ela viria a saber mais tarde, tinha um filho na Colômbia. Era bígamo, portanto.

Aos 38 anos, Maria da Penha Maia Fernandes ficou paraplégica por causa do tiro. Tinha três filhas pequenas e uma vida de sonhos voltada exclusivamente para a sua família. Depois de seis meses, em outubro de 1983, ela deixou o hospital para voltar ao seu cárcere privado, que era sua própria casa. Sofreu nova agressão. Desta vez, uma tentativa do ex-marido em eletrocutá-la, quando tomava banho.

Foi necessário que a família interferisse no casamento e conseguisse uma autorização judicial para que ela pudesse abandonar a casa, juntamente com suas três filhas. Quase um ano depois, em janeiro de 1984, ela prestou o seu primeiro depoimento à Polícia e, somente em setembro, um ano e quatro meses depois do atentado, o Ministério Público apresentou a ação contra o agressor. Maria da Penha já podia prever como o processo iria caminhar lento, se é que fosse mesmo caminhar. Só em 1986 a Justiça aceitou a denúncia. Três anos depois! É tempo demais.

Pior ainda. O ex-marido só foi levado diante de um Júri Popular em 1991, ou seja, oito anos depois do ataque covarde. E ele foi condenado a 15 anos de prisão, mas a defesa apelou da sentença. Heredia caminhava livre, enquanto Maria da Penha estava paraplégica. O caso foi parar em alguma gaveta do Judiciário, até que, em 1994, ela publicou o livro “Sobrevivi... Posso Contar”. A repercussão da publicação fez com que o caso voltasse à tona. Mas, voltou para pior.

Em abril de 1995, o Tribunal de Justiça do Ceará rejeitou um dos recursos e pediu novo julgamento. No mês seguinte, o Tribunal de Alçada Criminal anula o primeiro julgamento. Foram doze anos de luta praticamente perdidos. Todo o processo teria de recomeçar, mesmo com a mulher trazendo em seu próprio corpo as marcas do crime cometido por seu ex-marido. Somente em março de 1996 é que aconteceu o segundo julgamento, quando Heredia foi condenado a 10 anos e seis meses de prisão. A defesa entrou com novo recurso e o caso retornou para a gaveta do Judiciário.

Em setembro de 1997 aconteceu então um fato que mudaria radicalmente a condução de todo processo. Maria da Penha levou o seu caso ao conhecimento da Organização dos Estados Americanos (OEA), que analisou o processo minuciosamente. Em agosto de 1999 veio o ultimato. O Centro para Justiça e o Direito Internacional e Comitê Latino-Americano e do Caribe para a defesa dos Direitos da Mulher pediram à OEA para aceitar a denúncia contra o Brasil e o governo brasileiro foi, então, advertido. O caso ganhou destaque internacional.

O governo brasileiro, no entanto, fez vista grossa. Não se manifestou, obrigando a OEA a reencaminhar o relatório ao governo brasileiro, dando-lhe um prazo de 30 dias para se manifestar, o que ocorreu em 2001. Mas, somente em 2002 é que o governo brasileiro se manifestou a respeito, apresentando suas considerações e se comprometendo com a solução do caso. O que de fato ocorreu, pois em setembro do mesmo ano Heredia foi preso no Rio Grande do Norte, onde passou a residir. Foi como se o governo lavasse as mãos, pois Heredia não cumpriu nem 1/3 de sua pena de 10 anos. No início de 2004 foi posto em regime aberto.

A grande vitória de Maria da Penha não foi ver o ex-marido condenado. Não foi receber a indenização de 60 mil reais. A grande vitória desta guerreira foi fazer valer a palavra feminina, foi enfrentar uma sociedade que enxergava a mulher como um ser frágil e fraco. E ela foi forte o suficiente para fazer com que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, pela primeira vez em sua história, constatasse um crime de violência doméstica. Foram 25 anos esperando por uma decisão final que os tribunais nacionais nunca conseguiram chegar. Tempo em que ela acumulou provas de que advogados, servidores do Judiciário e até juízes engavetavam o processo.

Não importa se a farmacêutica Maria da Penha vai empregar bem a indenização merecida. Não interessa que Heredia esteja solto. Interessa muito mais que os 25 anos de luta de Maria da Penha representaram uma conquista para todas as mulheres, representaram uma vitória contra a intolerância e a violência doméstica. Interessa muito mais saber que a sua grande vitória foi a redenção de todas as mulheres brasileiras.