21 de janeiro de 2008

Artigos - O longo prazo a curto prazo / O Ideoduto de Mangabeira

Leia abaixo dois artigos publicados na Folha de São Paulo. O primeiro, escrito pelo professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Harvard (licenciado), atualmente ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos e ex-colunista da Folha . Já o segundo, uma espécie de "crítica" ao primeiro, produzido pelo jornalista e colunista da área científica do mesmo jornal,Marcelo Leite.


O longo prazo a curto prazo



Há toda diferença entre um projeto que paira sobre o mundo e um que intervém. Não há futuro viável que não se possa prefigurar já

MODELO DE desenvolvimento baseado em ampliação de oportunidades econômicas e educativas, para dar braços e asas ao dinamismo frustrado dos brasileiros -é isso o que mais quer a nação. Para construir esse modelo, é preciso formular plano de longo prazo e traduzi-lo em iniciativas tangíveis e prontas: primeiras prestações de outro futuro. É preciso tratar do longo prazo a curto prazo.


Desse entendimento resultou a decisão de organizar o trabalho inicial de minha pasta em torno de quatro grandes temas: oportunidade econômica, oportunidade educativa, Amazônia e defesa. Para cada um deles, formulamos, em colaboração com os ministros das respectivas áreas e com o apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ações que encarnem e antecipem novo modelo de desenvolvimento. Idéias, quando reforçadas por uma lógica de co-autoria dentro do governo e da sociedade, constituem o primeiro requisito para mudar o país.


Uma das iniciativas de oportunidade econômica é política industrial e agrícola voltada para as pequenas empresas e os empreendimentos emergentes que constituem a maior força de nossa economia. Formação de práticas e de quadros, ampliação do crédito ao pequeno produtor e transferência de tecnologia são as diretrizes.

Outra iniciativa se destina a refazer nosso modelo institucional de relações entre o trabalho e o capital. O Brasil está ameaçado de ficar espremido no mundo entre economias de trabalho barato e economias de produtividade alta. Precisamos escapar dessa prensa pelo lado alto, o da valorização do trabalho e da escalada de produtividade.


Não temos futuro como uma China com menos gente. É essa a preocupação que orienta o esforço de construir, com as centrais sindicais e as lideranças do empresariado, um plano para resgatar mais da metade de nossos trabalhadores da informalidade, reverter a queda da participação dos salários na renda nacional e reorganizar o regime sindical.


Em matéria de oportunidade educativa, são três os programas a que nos dedicamos, junto com os ministros Fernando Haddad (Educação), Sergio Rezende (Ciência e Tecnologia) e Gilberto Gil (Cultura). Rede de escolas médias federais que, ao fortalecer o elo fraco de nossa rede escolar, também sirva de instrumento para mudar nosso paradigma pedagógico no rumo de ensino analítico e capacitador.


Conjunto de procedimentos para reconciliar a gestão local das escolas pelos Estados e municípios com padrões nacionais de investimento e de qualidade. (A qualidade do ensino que uma criança brasileira recebe não deve depender do acaso do lugar onde ela nasce.) E programa de inclusão digital que organize infovia nacional, fortaleça as capacitações populares de acesso à rede, estimule a produção de conteúdos nacionais e crie estrutura de governança capaz de dar voz à sociedade civil, não só aos governos e às empresas.


Na Amazônia, o Brasil pode revelar-se ao Brasil. Zoneamento econômico e ecológico, que tome por pressuposto a resolução das questões fundiárias, é ponto de partida para delinear estratégias econômicas distintas para diferentes partes da Amazônia.


Uma estratégia para a Amazônia já desmatada, onde temos chance para deixar de repetir os erros de nossa formação econômica. E outra estratégia para a Amazônia com mata, que assegure que a floresta em pé, porém aproveitada de forma controlada e sustentável, valha mais do que a floresta derrubada. Na defesa, começa esforço vital para nosso futuro. Não há estratégia de desenvolvimento nacional sem estratégia nacional de defesa. A diretriz é reorganizar as Forças Armadas em torno de vanguarda tecnológica e operacional, pautada por cultura de mobilidade e de flexibilidade e baseada em capacitações nacionais. Essas iniciativas são apenas um começo. Não asseguram a reconstrução de nossas instituições, necessária para democratizar o mercado e para aprofundar a democracia.


Não nos eximem de formular estratégia de desenvolvimento nacional que seja abrangente e de longo prazo. O objetivo de tal estratégia não é tolher nosso futuro; é, pelo contrário, prover a nação de meios para que ela se possa reconstruir experimentalmente. Há toda diferença, porém, entre projeto que paira sobre o mundo e projeto que intervém no mundo. Não há futuro viável que não se possa prefigurar já. O bom do Brasil tem sido sua vitalidade. O ruim tem sido seu conformismo. Não basta nos rebelarmos contra a falta de justiça se não nos rebelarmos também contra a falta de imaginação. Vitalidade -vibrante, anárquica, quase cega- já temos. Quando a imaginação der olhos à rebeldia, teremos também grandeza.


O CONTRAPONTO....


O Ideoduto de Mangabeira






Depois de trocar a aprazível Cambridge, Massachusetts, pela aridez de Brasília, Roberto Mangabeira Unger, o extraordinário ministro de Assuntos Estratégicos, baixou na Amazônia com comitiva de mais de 30 pessoas. Cheio de idéias. Fora de seu lugar natural, pareciam também fora de propósito.Estava na lista o nome de Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, que fez o caminho inverso (dos cafundós do Acre para o Plano Piloto), mas não deu as caras. Deu foi um cano, e logo depois de falar em São Paulo num simpósio... criacionista (mas isso são outros 500). Assim funciona o governo.

Dá na veneta de um ministro formular um plano grandioso para metade do país, e os outros o deixam falando sozinho. É bem verdade que o alcance das idéias de Mangabeira não deve animar ninguém a acompanhá-lo naquela altitude. Nem em pensamento. Sua idéia que mais chamou atenção, a ponto de ocupar manchete de primeira página do jornal "O Globo", foi a de aquedutos para levar água da Amazônia ao Nordeste. Direto da sobra "inútil" para a falta "calamitosa". Simples.

Tão simples que o próprio Mangabeira se perguntou se não seria ingênuo. Sua resposta é técnica: novas maneiras de conceber e construir aquedutos. "A razão, porém, acabará por assistir ao ingênuo, não ao técnico. O custo do transporte de água é relativo às tecnologias disponíveis para transportá-la", pontificou. Empreiteiros devem ter aplaudido à beça. Engenheiros contraporiam, em reserva, que distância e valor por peso do bem a transportar também pressionam a equação, mesmo sem lastrear a imaginação. Sendo imponderáveis, não custa nada transportar muitas idéias -por exemplo- de avião. Mangabeira aproveitou o vôo para despejá-las em cascata sobre a comitiva brasiliense e as platéias amazônidas. Duas mais merecem comentário -uma deslocada, outra desinformada.

O ministro está preocupado com os índios da Amazônia: "Ameaçam afundar na desagregação social e moral -no ócio involuntário, no extrativismo desequipado, no alcoolismo e no suicídio". Para um filósofo e titular de Harvard, a incorreção antropológica soa chocante. Além de não se justificar pelos valores, o dito tampouco se fundamenta em fatos. Pode valer para um ou outro indígena na Amazônia, mas não é a regra para os muitos povos que lá tiveram suas terras demarcadas e homologadas. Decerto se aplica à tragédia dos guaranis em Mato Grosso do Sul, que não fica na Amazônia, no entanto. Mais alarmante é sua proposta de mobilizar o "potencial energético latente nas árvores -na celulose e na lignina". Em outras palavras, usar a floresta chuvosa para fazer combustível (álcool de madeira). Com "replantio constante das árvores", cuida de esclarecer o ministro.

É a prova cabal de que Mangabeira nada entende de mata amazônica. Apenas transfere para elas esquemas mentais lobrigados nos bosques temperados do hemisfério Norte. O potencial energético das árvores amazônicas já é mobilizado -à taxa de mais de 2 milhões de metros cúbicos por ano- na forma de carvão vegetal e ilegal. Tudo para alimentar uma dúzia de usinas de ferro-gusa no Pólo Carajás (Pará). A ferro e fogo, bem no estilo nacional. Além disso, o filósofo desconhece que o manejo florestal, na Amazônia, prescinde do replantio de árvores. A reposição é feita naturalmente, se forem deixadas produtoras de sementes em densidade suficiente na mata. Há grandeza nessa visão da vida amazônica. O que lhe falta é acuidade.

MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em Dia (Editora Ática, 2007).
Blog: Ciência em Dia (
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