2 de junho de 2008

A escritura amazônica

Luiz Inácio falou. Avisou. “A Amazônia brasileira tem dono.” Na abertura do 20º Fórum Nacional, na sede carioca do BNDES, o presidente Lula deixou claro que não cederá a pressões externas para que o Brasil detenha o desmatamento da floresta e, muito menos, abdique de sua posse desse tesouro natural. As pressões externas parecem não estremecer. No mesmo dia, um relatório da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) informava que o empresário sueco Johan Eliasch, consultor do premiê britânico Gordon Brown, avaliou que poderia comprar toda a Amazônia por US$ 50 bilhões. Foi, então, a vez de o novo ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, avisar: o Brasil está aberto a doações de estrangeiros (ele propõe a criação de um fundo internacional para a preservação da Amazônia), mas vai dificultar a compra de terras nacionais por empresas estrangeiras. É um toma-lá-dá-cá.

No meio das controvérsias sobre quanto de ajuda externa o Brasil pode aceitar sem abrir mão de sua soberania, algumas vozes se levantam para dizer que uma coisa não exclui a outra. Uma das mais insistentes é a do advogado americano Mark London. Co-autor, com o jornalista Brian Kelly, de A Última Floresta: A Amazônia na Era da Globalização, lançado no começo do ano pela editora Record, London visita a floresta duas vezes por ano, em média, há mais de 25 anos. Em 1982, escreveu seu primeiro livro sobre o lugar, Amazon. Mais do que simplesmente teorizar sobre ela, London começou a agir. Desenvolveu um projeto com a rede de hotéis Marriott e com o governo amazonense para distribuir uma espécie de bolsa-floresta a 500 pessoas em uma reserva de 600 mil hectares. A empresa doará US$ 2 milhões nos próximos três anos para a Fundação Amazonas Sustentável e esse dinheiro será repassado aos moradores da reserva escolhida para que eles desenvolvam atividades econômicas sustentáveis. “Não vamos dizer como eles têm de fazer isso. Portanto, não interferiremos em sua autonomia”, defende-se.

Numa escala maior, o advogado acredita que o País deva estabelecer parcerias internacionais para que se invista em agricultura e agropecuária em áreas já devastadas da floresta. E derrube esse estigma de que todo estrangeiro é um explorador insaciável. “Desde que os investidores internacionais respeitem as leis locais, não há porque negar seu acesso às terras brasileiras.” De Washington D.C., London concedeu a seguinte entrevista ao Aliás.

Os donos e os outros - “O Brasil é o dono da Amazônia que está dentro de suas fronteiras. O Brasil é o legítimo proprietário desse fantástico recurso natural, que afeta diretamente o ambiente do resto do mundo, que, por sua vez, tem o dever de ajudar a preservá-lo. O aquecimento global é um problema, obviamente, mundial, mas as soluções estão nas mãos de cada país, porque a terra é deles. A comunidade internacional tem que trabalhar com cada um para ajudar a preservar seus recursos naturais, encontrando alternativas para que as medidas façam sentido tanto para o próprio país quanto para o planeta. É possível fazer isso.

Preço da floresta - “Não sei em que contexto o sueco Johan Eliasch falou sobre os US$ 50 bilhões para comprar a Amazônia. Mas há pelo menos duas maneiras de interpretar essa fala. Suponhamos que o protocolo de Kyoto inclua a devastação de florestas nativas e o Brasil passe a receber créditos de carbono pelo desmatamento evitado na Amazônia - créditos de US$ 50 bilhões - e esse dinheiro passe a pertencer ao Brasil, que agora tem a obrigação de preservar a floresta e os recursos para fazer isso. Parece uma ótima idéia, não? Porém, se dissermos que alguém dará US$ 50 bilhões ao Brasil e passará a ser o dono da Amazônia, é outra explicação, e soa terrível. Depende de como explicar. Por isso, a atualização do protocolo de Kyoto é tão importante. Embora o presidente Lula tenha declarado que o protocolo faliu, acredito que, se for incluída a devastação de florestas nativas e se os EUA finalmente assinarem o tratado, ele será um instrumento muito forte.

Não façam o que eu digo - “Mesmo se a ajuda externa vier na forma de contribuições financeiras, a soberania brasileira não estará ameaçada. No projeto que desenvolvi com a rede de hotéis Marriott e com o governo do Amazonas, por exemplo, não dizemos como as pessoas devem usar o dinheiro que doaremos, não interferimos na autonomia dessas pessoas para decidir o que é melhor. Constituímos um time em que confiamos e concordamos com a forma como elas queriam desenvolver o programa. Elas poderiam ter dito não, nós também. Mas todos têm os mesmos objetivos. Os moradores daquela reserva receberão recursos financeiros, que vão ajudá-los a modelar uma economia sustentável, a criar oportunidades de educação. Se dermos a eles uma vida sustentável, eles criarão um ambiente sustentável.

Corrupção x Jurisdição - “Para esse projeto que mencionei, o governo amazonense criou a Fundação Amazonas Sustentável, presidida pelo ex-ministro Luiz Fernando Furlan. Virgilio Viana, ex-secretário do Meio Ambiente do Estado na gestão Eduardo Braga, dirige a fundação. O dinheiro vai para essa instituição, que o distribui para os moradores da reserva. A participação do governo se restringiu, portanto, à luz verde que nos deram, por meio da legislação, para a criação da fundação. De qualquer forma, a percepção internacional de que os governantes brasileiros são corruptos está mudando. Eduardo Braga é um grande líder, Jorge Viana, no Acre, também. Se o mundo quer preservar a Amazônia, não pode assistir de camarote enquanto a floresta arde. Mais do que a corrupção, o que dificulta é a jurisdição. Há leis federais, estaduais, municipais, há regras da Funai, Ibama...

O Fundo Internacional - “A idéia desse fundo proposto pelo ministro Carlos Minc tem uma escala enorme. Trabalho numa escala menor, não sei como os governos dos países que contribuirão com o fundo reagirão. O dinheiro será administrado pelo BNDES, o que pode gerar alguma burocracia. Para mim, o plano, inicialmente, cria mais perguntas do que as responde. Agora, é possível para o Brasil abrir seu cofre para dinheiro estrangeiro sem ferir sua soberania. Em primeiro lugar, porque ninguém vai pôr a Amazônia num caminhão e levá-la embora. O risco, portanto, não é do Brasil, é dos países que colocarão dinheiro aí. Se vamos criar planos para preservar a Amazônia, é preciso que eles gerem algum benefício para as pessoas que lá estão. Porque se dermos dinheiro ao governo e ele criar leis que sejam apenas imperativas, ‘não faça isso, não faça aquilo’, não vai funcionar. O plano tem que dizer ‘se você fizer isso, vai sair beneficiado, vai ter uma renda, sua vida vai ser melhor’.

Go Home! - “Estrangeiros compraram muita terra no Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina. As leis brasileiras permitiram e o Brasil se beneficiou com isso. Não compreendo porque os estrangeiros não poderiam comprar terras em outros lugares do País, desde que eles obedeçam às leis. O Brasil pode se beneficiar disso também. O fato de se tratar de estrangeiros não os torna fora-da-lei. Então, enquanto a legislação fizer sentido, não importa de onde os investidores venham. Aliás, o problema de desmatamento na Amazônia é brasileiro, não estrangeiro. Ou mais, é um problema da natureza humana, não de nacionalidade. Todos querem subsistir a partir dos recursos que estão ali. Desde que se obedeça à lei, não vejo problema nisso.

Pedaço por pedaço - “É difícil fazer planos para a Amazônia como um todo. O que funciona no Amazonas não funciona no Mato Grosso, por exemplo. Temos que planejar pedaço por pedaço. No Estado do Amazonas, 98% da floresta ainda está preservada. Em parte, graças à Zona Franca de Manaus. O que eles fizeram lá foi criar oportunidades econômicas para atrair os amazonenses para Manaus e evitar que eles explorassem a floresta. Agora, estão tentando desenvolver atividades para as pessoas que vivem na floresta, de maneira que elas possam cuidar de sua subsistência ao mesmo tempo em que se tornam guardiãs da floresta. Este é um plano que faz sentido ali.

O ‘demônio’ - “Não me encontro com o governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, há anos, mas o considero muito importante. Todos o demonizam, e isso é errado. Ele é uma figura proeminente e as pessoas devem lidar com ele. E o plano para o Mato Grosso deve ser plantar soja nas terras já devastadas. Assim, elas podem se tornar produtivas e não haverá necessidade de desmatar a floresta. Três resultados viriam disso: diminuição da escala de desmatamento, criação de oportunidades para agricultores e transformação de terras devastadas em terras produtivas. Essa alternativa evidencia que há um papel a ser desempenhado pela comunidade internacional, por meio de parcerias com o Brasil para levar atividades econômicas a áreas que não prejudicarão o meio ambiente.

‘Há pessoas ali também’ - Para mim, um dos maiores pensadores sobre Amazônia foi o escritor Samuel Benchimol. Ele falava insistentemente: para preservar o ambiente, é preciso preservar as pessoas que vivem nele. O ambiente não se resume apenas a árvores e animais. Não é um espaço vazio, há pessoas ali também. Não podemos mandar as pessoas embora. Acredito que seja possível preservar uma parte substancial da Amazônia, cerca de 75%. Para isso, é preciso criar parcerias, consolidar confiança mútua entre os países, acabar com a corrupção. Mas isso leva tempo. Eu me lembro de conversar com ministros brasileiros no começo da década de 80. Conversei com Delfim Netto sobre o futuro do Brasil. O futuro chegou e muita coisa aconteceu. As pessoas estão pensando sobre o assunto, houve uma melhora nas discussões. Mas ainda é necessário melhorar muita coisa, claro.

Mais dinheiro, mais cuidados - “A consciência ambiental é um privilégio de países desenvolvidos. O sucesso econômico cria condições para que os cuidados com o ambiente aumentem. Então, quanto mais desenvolvido o Brasil for, mais chances ele terá de criar essa consciência. Mas os EUA não se tornaram um país mais consciente conforme se tornou mais bem-sucedido. Depende das escolhas que o país faz. Mas há muitas pressões para que a Amazônia se desenvolva economicamente.

A saída de Marina - “A ex-ministra Marina Silva perdeu a paciência justamente com essas pressões por progresso econômico na Amazônia. É uma pena. Mas eu escrevi no meu livro: um dos trunfos de Marina Silva era a habilidade de se demitir e, quando ela fizesse isso, a comunidade internacional ficaria muito insatisfeita com o Brasil. É cedo para dizer se as pressões aumentarão sobre o Brasil com a saída da ministra. Mas, mesmo que aumentem, não podemos desistir dessa luta, temos que debater, na busca de soluções para a floresta.”

Fonte: O Estado de S.Paulo