15 de janeiro de 2009

Desvantagem feminina

Relatório aponta a discriminação sofrida pelas brasileiras em áreas como a do trabalho, da reprodução e da privação de liberdade. Tratamento desigual persiste até nos presídios

Seis décadas depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, as mulheres brasileiras ainda são vítimas de violações nos campos do trabalho, da reprodução e da privação de liberdade. Pela primeira vez, em nove anos de publicação, o relatório Direitos Humanos no Brasil, elaborado por diversas organizações não-governamentais, aborda as condições da população carcerária feminina, além de dedicar outros dois artigos específicos sobre a discriminação sofrida pela mulher no país.

Um dos casos mais emblemáticos, defende a advogada Beatriz Galli, consultora no Brasil da Ipas, organização internacional que trabalha com a garantia dos direitos reprodutivos, é o da ameaça de processo criminal contra 10 mil mulheres que fizeram aborto no Mato Grosso do Sul. Em abril de 2007, a mídia denunciou a existência de uma clínica que fazia a interrupção da gravidez de forma clandestina. O Ministério Público do estado denunciou a proprietária, as funcionárias e, durante o mandado de busca e apreensão, foram recolhidos 9.862 prontuários de mulheres que se submeteram ao procedimento. Com base nos documentos, elas foram identificadas e investigadas. Desde o ano passado, 2 mil foram processadas e 26 cumprem pena alternativa em creches da região.

“Nunca vi uma perseguição neste grau”, diz Beatriz Galli, para quem o aborto deve ser tratado como problema de saúde pública. Ela afirma que o processo no Mato Grosso do Sul resultou na violação do direito à privacidade e do sigilo médico. Apenas um perito indicado pela Justiça pode manusear prontuários. Porém, os apreendidos na clínica de Campo Grande foram manipulados por policiais não autorizados, além de divulgados à imprensa. “Esse caso pode, inclusive, levar o Brasil a alguma corte internacional, como a Organização dos Estados Americanos.”

Estima-se que, por ano, sejam realizados mais de 1 milhão de abortos no país, sendo que 250 mil internações ocorrem, no mesmo período, em decorrência de complicações da interrupção da gravidez. A advogada alega que, embora o juiz e o promotor do caso tenham afirmado que estavam apenas aplicando a lei, o magistrado poderia suspender os processos. “A punição criminal não previne a ocorrência de novos abortos. Não é porque é crime que as mulheres deixam de fazer”, diz. Para ela, a legislação precisa ser revista, a exemplo do que ocorreu na Colômbia e no México, onde a prática foi descriminalizada. Galli entregou no ano passado ao ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, um documento recomendando a extinção de processos criminais contra mulheres que abortaram.

A advogada diz que não se trata de decidir se o procedimento é certo ou errado, mas de definir se a mulher que interrompe a gravidez deve ou não ir para a cadeia. Ela cita uma enquete da Ipas na qual a maioria das pessoas se disse contra o aborto, embora conhecesse alguém que já o fez. Quando perguntados se achavam que aquela pessoa deveria ser presa, os entrevistados diziam que não.

Pela primeira vez, o relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos aborda a questão das mulheres encarceradas. Elas representam apenas 6% do sistema prisional brasileiro, mas estão aumentando bastante: de 2001 a 2006, o número de presas cresceu 135%. A maioria é condenada por tráfico de drogas e está concentrada em São Paulo, que abriga 80% das presidiárias. De acordo com o relatório, o perfil é, majoritariamente, de mulheres jovens, negras e mães solteiras.

A denúncia das pesquisadoras Lívia Gimenes Dias da Fonseca e Luciana de Souza Ramos refere-se às condições as quais as presas são submetidas. Em São Paulo, 49% delas esperam mais de um ano para sair da delegacia e serem abrigadas em presídios, contra 36,9% dos homens. Além disso, sofrem discriminação em relação aos direitos reprodutivos. Poucas unidades prisionais femininas admitem visita íntima. “A desigualdade entre gêneros se faz de forma perversa na privação sexual imposta às mulheres presas de maneira mais contundente e inflexível do que para os homens presos, seja sob a alegação de evitar a gravidez, seja pelo baixo índice de visitas dos companheiros”, alegam, no relatório.

Escravas - Zilda, boliviana de 22 anos, ilustra a história de mulheres migrantes que vêm para o Brasil tentar uma vida melhor e acabam em situação análoga à escravidão, trabalhando incessantemente em oficinas de costura de São Paulo. Ela foi atendida pelo Centro de Apoio ao Imigrante de São Paulo (Cami), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A mulher chegou ao país com o marido e três filhos, com a promessa de trabalho. “No começo, moramos numa favela, mas depois de um tempo fomos levados para uma oficina de costura. Ficamos trancados lá uns oito meses. Trabalhávamos noite adentro e recebíamos uns R$ 50 por mês”, relatou Zilda à Cami. O relatório Direitos Humanos no Brasil denuncia esse e casos semelhantes.

Para Maria Luisa Mendonça, diretora da Rede Social e organizadora do relatório, o debate sobre os direitos da mulher tem avançado, mas o problema ainda é imenso. “A discriminação continua grande. Enquanto não houver políticas estruturais, o cenário não vai se reverter”, lamenta.
Realidades diferentes

Veja alguns dados que constam do relatório Direitos Humanos no Brasil em relação ao tratamento dado às mulheres no país:

Cárcere - Entre 2001 e 2006, houve um aumento de 135% no número de mulheres encarceradas no Brasil

- O sistema penitenciário brasileiro abriga 14.058 mulheres, sendo que 25% estão em delegacias públicas, contra apenas 13% dos homens

- 80% da população carcerária feminina encontra-se em São Paulo

- Em São Paulo, 49% das mulheres esperam mais de um ano para ir definitivamente para um presídio, contra 36,9% dos homens

- Em São Paulo, 36,3% das mulheres não recebem visitas, contra 29,2% dos homens
52% das mulheres, contra 22% dos homens, vivem em condições inadequadas nos presídios

- 81% dos parceiros não assumem os filhos quando suas mulheres são presas

Aborto - Estima-se que sejam realizados anualmente 1.054.243 abortos no Brasil
Para cada três nascidos vivos, é feito um aborto induzido

- Ocorrem cerca de 250 mil internações por ano para tratamento das complicações de aborto no país

- Os custos das internações decorrentes de complicações de abortos clandestinos são de R$ 35 milhões

- De 2000 a 2004, ocorreram 697 óbitos em consequência de gravidez que termina em aborto, principalmente em mulheres jovens, de 20 a 29 anos, com 323 óbitos

Migração - Existem cerca de 60 mil imigrantes bolivianos trabalhando ilegalmente nas oficinas de costura paulistanas, a grande maioria mulheres

- Os imigrantes pagam de US$ 100 a US$ 200 para os coiotes, que os transportam até o Brasil por diferentes rotas. O valor da viagem é pago, em média, depois de 12 meses

- 18 bairros de São Paulo, que fornecem mercadoria para grandes redes de lojas, concentram a cadeia produtiva da exploração da mão-de-obra boliviana.

Fonte: Correio Braziliense